quarta-feira, 14 de abril de 2010

O Pub Irlandês

O velho pub irlandês fundado a mais de cem anos nas zonas da cidade que hoje continuam sombrias e pouco visitadas, finalmente seria reaberto. O mesmo pub que antes recebera prostitutas, ladrões, assassinos, futuros suicidas e outros tantos indivíduos na mesma situação, como freqüentemente se podia ver após o soar retumbante e uníssono das doze badaladas, pouco mudara desde a última noite em que estivera funcionando.
Muitos são os boatos que o cercam e que dizem respeito a sua interdição; na época considerada por todos os não-frequentadores como “a melhor solução para os problemas da cidade”. A verdade é que, embora se tornasse algo quase repentino e sem muitas explicações, o seu fechamento já estivera previsto a algum tempo.
Dizem as línguas estranhas que o dono e gerente do bar, Roman, um velho ainda mais velho que seu próprio estabelecimento, que desde jovem era freqüentador e seguidor de cultos satânicos, chegara ao ponto de não conseguir controlar a si mesmo, muito menos da administração do bar. Freqüentemente era possível sentir um forte cheiro de decomposição e de carniça vindo de quase todos os cantos do pub, como se alguém ou algo sem vida estivesse apodrecendo bem debaixo de seu nariz. Além disso, por inúmeras vezes, quando o barman destampava uma garrafa de cerveja irlandesa, uísque ou Martini (as bebidas mais pedidas) e servia aos fregueses; estes sentiam o gosto, o cheiro e a consistência de sangue fresco, chegando até a consumi-lo quente; fato que só fortalecia os boatos de que este sangue tratava-se de crianças, mulheres e outros freqüentadores; todos desaparecidos e de que ninguém mais tinha sequer uma notícia.
A minha lenda favorita (ou história, não sei ao certo) desenrolou-se ao longo de uma noite durante a conturbada e ao mesmo tempo inesquecível década de 60. Naquela época, provavelmente em meados do ano de 1969, as canções mais tocadas resumiam-se em hits de Black Sabbath, Deep Purple, Aerosmith e algumas vezes Beatles; e a moda predominante constituía-se de jovens de cabelos compridos, os hippies, e os representantes da geração Beat, também de cabelos longos. Sarah, porém, não se enquadrava em nenhum desses estilos.
Apesar de muito bela, com seus longos cabelos negros e seus impetuosos olhos verdes que assumiam um tom rubro feito brasa quando iluminados pela luz do sol ou de velas, Sarah era uma jovem de poucas palavras, quieta, introspectiva e que sempre se vestia com cores escuras e fortes.
Apresentava também hábitos considerados por gente alheia como incomuns, mas que para mim, a melhor descrição possível que se podia fazer para a soma de sua personalidade, caráter, características físicas e costumes pessoais era a palavra macabra.
Era uma noite estrelada de verão e já passava da meia-noite quando Sarah entrou no pub. Ali dentro, um lugar espaçoso com mesas de bilhar, um longo balcão onde se situavam os barmans e outras tantas mesas espalhadas por todo o pub onde se localizavam a imensa maioria dos fregueses, era tocada um trecho de “smoke on the Water”.
Sarah passou por duas mesas antes de sentar-se ao balcão. Enquanto um dos barmans, o mais alto deles, lhe servia um esplendoroso drinque de uísque, um daqueles típicos motoqueiros, soberbos e redis, sentou-se ao lado dela:
- O mesmo dela, por favor. – Pediu o homem – Não pude deixar de notar você quando passou por aquela porta, baby. – continuou ele com o tom prosaicamente característico de todo o fiel malandro motoqueiro. Ele continuou falando e discursando contra a impassível figura de Sarah até o momento em que, ela, que durante todo o diálogo permaneceu mais entretida na bela e cara jaqueta de couro que o indivíduo portava do que propriamente no que este dizia, o dispensou perguntando-o gentilmente se não tinha nada melhor para fazer do que testar a longevidade de sua paciência.
Mal se tinham passado dez minutos e outro sujeito, agora um músico guitarrista de uma banda de rock, também se aproximou de Sarah dizendo:
- Aquele cara ali era um tagarela. Falava até não poder mais. Notei que você talvez tenha percebido isso. – Simplificou ele a grosso modo. Entretanto, apesar de suas tentativas de impressioná-la, também foi dispensado de modo “gentil” pela impaciente garota.
Este ciclo de cantadas, sujeitos estranhos e infelizes e ladainhas enfadonhas repetiu-se por mais duas oportunidades, até que Todd, um americano de aproximadamente 20 anos (o quinto da noite), timidamente sentou-se ao lado de Sarah:
- Um uísque, por favor – Pediu ele ao barman. Enquanto degustava a forte dose da bebida destilada, tronou a falar conservadora e inocentemente:
- Belo colar – disse fazendo menção á uma esmeralda pendurada por uma corrente envolta pelo pescoço de Sarah - Combina com seus olhos.
- Obrigada – respondeu ela, enrubescendo-se um pouco – Foi minha avó que me deu.
- E pelo jeito ela tinha bom gosto. Meu nome é Todd.
- Sarah
Todd era, como já mencionei, bem jovem. Pelo que se conta até hoje sobre sua descrição, ele era particularmente alto, franzino, ruivo, com algumas sardas pequenas espalhadas pelo rosto que passavam despercebidas. Não sei se ele tinha algum ofício, hobby ou algum estilo de vida considerado fora dos padrões sociais para freqüentar aquele tipo de pub, mas a razão pela qual lá ele se encontrava naquela noite é uma só:
- Por que você vem aqui? Você não parece o tipo de pessoa problemática ou perturbada que mais vemos aqui. – Perguntou Sarah após um pouco mais de intimidade entre ambos.
- Na verdade eu vim de muito longe. Eu fui convocado para servir no Vietnã, mas não concordo com essa guerra. Ela não é nossa. Então tive de fugir. Não agüentava mais meu pai falando aquele monte de baboseiras sobre o destino, que não podemos escapar dele, e mais um monte de coisas. E também acho que se eu agora estivesse naquele inferno eu já teria morrido.
- Como assim? – Interpelou a garota, não entendendo o que Todd queria dizer.
- Na noite seguinte a qual recebi a convocação, eu tive um sonho em que eu me encontrava em um lugar muito escuro sob uma grande árvore e então eu podia sentir que a morte me encontrara e me levava para o mundo dos mortos. Nunca mais fiquei calmo depois desse... Pesadelo.
- Hum... Entendi. – Retornou ela no momento em que o refrão de uma música que falava algo sobre a morte que se aproximava e de assassinos onde menos se espera se iniciava. Os dois continuaram a conversar amistosamente sobre vários assuntos como gostos, hobbys, artistas, livros de terror, bebidas entre outros. Quando o imenso relógio suíço de madeira nobre pendurado na parede assentada atrás dos barmens anunciou de forma medonha e austera, devido a falta de óleo em seus mecanismos, três horas da manhã em ponto, Sarah, que não se assustou com o som escarnecedor do objeto, ao contrário de Todd, pediu que ele a acompanhasse.
Saíram então do pub. Passaram por uma larga estrada que serpenteava por um conjunto de casas abandonadas e castigadas pelo tempo, por mais três encruzilhadas, que em uma delas havia os restos de uma galinha trucidada cujo sangue fora usado em algum tipo de ritual desenhado em forma de um pentagrama; até chegaram aos portões do cemitério das Três Almas, o mais antigo e macabro da cidade. Estes portões, altos, pesados, feitos por longas barras de ferro encontravam-se entreabertos, fato que deixou Todd arrepiado. Sarah já havia passado pelos portões quando, ao virar-se para trás, avistou o garoto petrificado e possuído de uma grande desconfiança e pânico:
- Venha Todd. Não tenha medo. – Todd, acabou vencido por suas pernas que apesar do surto de calafrios permaneceram firmes, e a seguiu para o interior do cemitério.
Enquanto a seguia, notou que uma neblina densa começava a se formar, dificultando a caminhada entre os túmulos que já não eram fáceis de enxergar por causa da escuridão que os engolfava. Em alguns cantos do cemitério, árvores que mais pareciam mãos negras com dedos contorcidos interpelavam-se entre os túmulos e lápides, servindo de hospedeiras para grupos de corvos e gralhas que entoavam suas canções tenebrosas de boas-vindas.
Caminharam mais um pouco e então, para desespero de Todd, pararam. Ele fitava amedrontadamente uma grande árvore que tinha certeza que já a vira em outra oportunidade. Lembrou-se das palavras de seu pai sobre destino, das boas e más lembranças de infância e adolescência, da carta de convocação, da música no bar. Sentiu-se encurralado. De repente lembrou que estava acompanhado. Tudo se elucidara e se encaixava como em um perfeito quebra-cabeças em sua mente.
Deu meia-volta e avistou Sarah. Estava encapuzada com seu rosto coberto pelas sombras. Apenas dois pontos de luz avermelhada partiam de sua face. Segurava com suas mãos irreconhecíveis, sem pele, carne e apenas ossos uma lápide em que se estava seu nome, datas de nascimento e de morte grafadas em letras negras grandes que contrastavam com a cor branca e pálida da lápide. Neste momento, sentindo uma forte dor no peito, expirou. Suas últimas palavras foram:
- Por que eu não fui para o inferno da guerra...?
Muitos anos depois, esta história ainda permanece viva nos habitantes mais grotescos da cidade, e também em muitos outros, já que ela praticamente tornou-se parte da cultura popular da região. Mais um fator que só aumenta as superstições e o charme do velho pub irlandês. Quando pergunto a alguns dos conhecedores da história sobre o que pensam do injustiçado Todd, todos respondem que este morreu de susto e consternação. Creio eu, entretanto, que o rapaz morrera porque simplesmente lhe havia chegado a hora.


(Escrito por D.H. Cabrerizo)

3 comentários:

  1. Leiam e comentem este conto que é muito bom...

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  2. Eu gostei,é uma história bem interessante:)

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  3. eo também gostei, em breve terá mais contos de Denis Cabrerizo, fike sempre no blog...

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